Sobre o valor da História - Farias Brito

 

Sobre o valor da História:

o Espírito como centro da esfera infinita do Universo

Neste dédalo obscuro e incerto da indagação sobre as origens do homem, não tentarei arriscar-me; a estes ousados investigadores que se esforçam por arrancar do passado os seus segredos mais remotos, não acompanharei. Não é que ponha em dúvida  a eficácia de seus esforços, ou acredite que daí não se poderá tirar nenhuma luz. Não. A história, como diz Burckle, “é uma mina preciosa e respeitabilíssima de riquezas”. É como uma espécie de memória coletiva que faz de todas as gerações que se sucedem através das ideias, um só organismo no tempo, e é pela história de modo mais eloquente que se afirma a unidade da espécie humana. Vê-se pelo ensino da história que obedecemos a um plano comum, regular e preciso; matematicamente certo, embora encaminhado por processos estranhos à toda a matemática; plano segundo o qual as nações se dissolvem e desaparecem, mas a obra da civilização vai sempre crescendo.


A história é como um registro coletivo do trabalho do espírito, o laboratório do pensamento. E para que exigisse uma prova da realidade do espírito, não seria bastante responder: E não está aí a história? Que mais quereis? Pois a história não é o reflexo mesmo do espírito, não é a descrição da peregrinação e do trabalho do espírito no seu esforço contínuo por tornar cada vez mais completa e mais vasta a consciência que vem adquirindo de si mesmo e do mundo?. E no momento presente, houve, como é sabido, um renascimento dos estudos históricos. “Os anais políticos e militares de todas as grandes nações europeias, como de quase todas as outras nações das outras partes do mundo, foram compilados com cuidado, reunidos sob uma forma cômoda, sendo escrupulosamente examinadas as provas em que se apoiam; os trabalhos não menos consideráveis, conquanto de caráter menos elevado, foram consagrados à história dos progressos e da ciência, da literatura, das belas artes, das invenções úteis, e mais recentemente, dos costumes e do bem-estar dos povos. A fim de aumentar nosso conhecimento do passado, foram examinadas as antiguidades de todo o gênero; foram descobertos os lugares onde existiram antigas cidades desaparecidas; moedas foram desenterradas; inscrições copiadas; alfabetos, restabelecidos; hieróglifos, interpretados; e em alguns casos, línguas desde muito tempo esquecidas foram reconstruídas e reformadas. Muitas das leis que regem as mudanças da palavra humana foram descobertas, e, na mão dos filólogos, serviram para esclarecer até os períodos mais obscuros das primeiras migrações de povos.” (BURCKLE, História da civilização na Inglaterra, Vol. 1, Cap. 1). E considerando em particular os fatos de ordem social e jurídica, não há uma escola nascida exatamente dos estudos históricos, representada ou constituída por historiadores e chamada precisamente a escola histórica? E não tem essa escola exercido poderosa influência e não é a ela que se deve, em grande parte, a  renovação da literatura moderna, neste gênero? Basta lembrar, quanto à história em geral, o nome de Hegel. Para este, segundo a frase de Croce, “a história é a realidade mesma da ideia, e o espírito nada é fora de seu desenvolvimento”. E, quanto ao direito em particular, que influência não exerceram, por seus valiosos trabalhos, Gustavo Hugo, Savigny, Puchta, e mais recentemente Ihering, D’Aguanno, Summer, Maine, Dareste? A verdade é que a escola histórica fez uma profunda revolução nas ciências jurídicas, sendo certo que nestas ciências os pontos de vista mudaram por completo. Dir-se-á, porém, que tudo isto é devido, não à escola histórica propriamente dita, mas, de preferência, às ciências naturais que de fato chegaram ao último século, sob a influência de Darwin, ao mais alto grau de desenvolvimento. Mas as ciências naturais não são também uma espécie de história, e a orientação que aí começa a prevalecer, não é a do ponto de vista genérico que se confunde exatamente com o ponto de vista histórico?


Seria, pois, absurdo negar a importância e a alta significação da história. E se é possível imaginar um método positivo que se possa empregar no estudo dos fatos de ordem psíquica, e por conseguinte no domínio da filosofia do espírito, análogo ao método experimental, tal como se pratica na física, na química e na biologia, - esse método só de pode compreender deste modo: examinando-se o espírito em sua atividade efetiva e m sua significação real, ou mais precisamente em seus fenômenos próprios, considerados, porém, objetivamente, isto é, tais como se manifestam exteriormente, já na esfera da consciência individual, já na esfera da consciência coletiva. Isto, significa, em termos mais precisos, que é na sua ação sobre os fatos sociais que esses fenômenos devem ser considerados: o que quer dizer que é em seu desenvolvimento histórico que devem ser estudados e que é a história que constituí o seu principal instrumento de investigação. [...] Deste modo, toda a história, não somente a história propriamente dita, como igualmente a pré-história, todas as indagações referentes ao passado, o estudo das antiguidades, a indagação das origens, compreendendo a paleontologia, a arqueologia, a etnologia, a ciência das religiões, etc., não são ciências propriamente ditas, mas processos de investigação para a elaboração do conhecimento referente aos fatos de ordem psíquica e moral. A história torna-se assim como um registro de fatos, como um laboratório imenso em que se faz o processo da vida mesma do espírito; e é aí seguramente que se deve encontrar a fonte mais fecunda das informações para as ciências psíquicas e para a filosofia do espírito.[...]


[...]


É, pois, o presente mesmo, o presente vivo e real que principalmente me interessa. Verdade é que o presente supõe o passado ao mesmo tempo que envolve o futuro. O espírito forma assim uma unidade, não somente no espaço, como igualmente no tempo, pois tudo o que existe no cosmos infinito interessa o seu conhecimento e está, de certo modo, subordinado à sua atividade, ao mesmo tempo que o conhecimento mesmo é como uma visão do espírito em suas direções opostas e ambas ilimitadas: na direção do passado e na direção do futuro. E se o Universo, como dizia Pascal, “é uma esfera infinita cujo centro está em toda a parte e a circunferência em parte alguma” é o espírito que representa o centro dessa esfera. Cada consciência representa, pois o centro do universo e deste centro partem raios que envolvem a totalidade das coisas.


BRITO, Farias. O Mundo Interior, 2 Edição, Rio de Janeiro, 1951 pp. 72-76


Jean Felipe Lemes Becker

Tradutor, livre pensador, estudante de filosofia

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